"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/12/2016

Jurisprudência (513)


Processo de expropriação; deserção da instância;
gestão processual


1. O sumário de RP 7/7/2016 (1058/08.0TBFLG.P1) é o seguinte:

I - A inércia das partes pode determinar a deserção da instância, o que ocorre quando o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses ou, tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, este se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses, em qualquer caso por negligência das partes e carecendo de ser julgada por despacho do juiz.
 

II - Na ponderação a fazer, o juiz não pode deixar de considerar o dever de gestão processual que recai sobre si próprio, nos termos enunciados no artigo 6.º do Código de Processo Civil.

III - No âmbito da expropriação e relativamente aos intervenientes processuais, releva o denominado princípio da legitimidade aparente, perante o qual a expropriante pode dirigir-se às entidades constantes das respetivas inscrições prediais e fiscais, mesmo que estas não sejam as verdadeiras e atuais titulares dos direitos que incidem sobre o imóvel a expropriar e sem que tal determine ulteriores anulações do processo.

IV - O juiz pode, oficiosamente, chamar ao processo outros interessados que não tenham sido convocados pelo expropriante, assegurando-lhes a defesa dos seus direitos, assim suprindo a inércia, erro ou negligência do expropriante e evitando que, por incompleta indicação por este dos interessados, a instância seja julgada extinta.

2. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão: 

"Considerando as regras gerais de processo civil vigentes na data em que os presentes autos deram entrada em juízo, a instância suspendia-se quando falecesse alguma das partes, sendo que, junto ao processo documento que provasse o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, ocorria de imediato a suspensão, salvo se já tivesse começado a audiência de discussão oral ou se o processo já estivesse inscrito em tabela para julgamento, casos em que a instância só se suspendia depois de proferida a sentença ou o acórdão, cessando a suspensão, neste caso, quando fosse notificada a decisão que considerasse habilitado o sucessor da pessoa falecida [artigos 276.º, n.º 1, alínea a), 277.º, n.º 1, e 284.º, n.º 1, do Código de Processo Civil].

Assim, o prosseguimento dos autos pressupunha a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, a qual podia ser promovida tanto por qualquer das partes que sobrevivessem como por qualquer dos sucessores e devia ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não fossem requerentes, com simplificação se a qualidade de herdeiro ou aquela que legitimasse o habilitando para substituir a parte falecida já estivesse declarada noutro processo, por decisão transitada em julgado, ou reconhecida em habilitação notarial (artigos 371.º, n.º 1, e 373.º).

A inércia das partes tinha consequências: considerava-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando estivesse interrompida durante dois anos, sendo a deserção julgada no tribunal onde se verificasse a falta, por simples despacho do juiz ou do relator e determinando a extinção da instância – artigos 291.º e 287.º, alínea c), do Código de Processo Civil.

Estas regras não prejudicavam o poder de direção do processo pelo juiz, enunciado no artigo 265.º.

A reforma da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, ocorrida no decurso da presente ação e aplicável nos seus termos subsequentes (artigo 5.º da referida lei), manteve estas regras gerais, com algumas alterações.

Assim, as regras relativas à suspensão da instância mantêm-se nos artigos 269.º, n.º 1, alínea a), 270.º, n.º 1, e 276.º, n.º 1), do Código de Processo Civil, na atual redação deste diploma.


O prosseguimento dos autos continua a pressupor a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, nos termos antes enunciados e que agora constam nos artigos 351.º, n.º 1 e 353.º.

E, com alguma diferenciação relativamente ao regime anterior, a inércia das partes continua a ter consequências: considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses ou, tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, este se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses, por negligência das partes, sendo a deserção julgada no tribunal onde se verifique a falta, por despacho do juiz ou do relator, continuando a deserção a determinar a extinção da instância – artigos 281.º e 277.º, alínea c), do Código de Processo Civil).


Importa no entanto salientar que “a deserção da instância, enquanto causa da extinção da instância, deixou de ser automática, carecendo de ser julgada por despacho do juiz, ao contrário do que acontecia no sistema anterior no qual a instância ficava deserta independentemente de qualquer decisão judicial”, pelo que, “no despacho que julga deserta a instância o julgador tem de apreciar se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes, o que significa que terá de fazer uma valoração do comportamento destas, por forma a concluir se a falta de impulso em promover o andamento do processo resulta efetivamente da sua negligência, pelo que, num juízo prudencial, deverá o julgador ouvir as partes por forma a avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas, e por força do princípio da cooperação, reforçado no nCPC, alertar as partes para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo decorrido que seja o prazo fixado na lei, agora substancialmente mais curto” – acórdão proferido em 26 de fevereiro de 2015, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 2254/10.5TBABF.L1-2, disponível na base de dados do IGFEJ (www.dgsi.pt).

E, na ponderação a fazer, o juiz não pode deixar de considerar o dever de gestão processual que sobre si recai, nos termos enunciados no artigo 6.º do Código de Processo Civil, estabelecendo que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio, em prazo razoável, providenciando oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo, gerindo o processo de modo a obter andamento célere em colaboração com as partes (artigo 7.º do mesmo diploma). E aqui cabe a obrigação de explicitar nos autos um concreto dever que caiba sobre uma ou ambas as partes, de modo que as mesmas fiquem conscientes de que o processo aguarda o seu impulso sob pena de deserção.

No caso específico do processo de expropriação, o mesmo dá satisfação ao princípio enunciado no artigo 62.º da Constituição, com as particularidades exigidas pela sua razão de ser e as regras enunciadas em legislação própria, resultante da Lei n.º 168/99, de 18 de setembro, e subsequentes alterações.

O processo expropriativo desenvolve-se em duas fases distintas, o que mais se evidencia em relação à expropriação litigiosa, seguindo-se a uma fase inicial essencialmente administrativa uma fase judicial, sem prejuízo da intervenção de órgãos judiciais na fase inicial, nomeadamente em defesa do expropriado.

É assim que, relativamente aos intervenientes processuais e acolhendo o ensinamento de José Osvaldo Gomes (“Expropriações por Utilidade Pública”, páginas 371 e 377), releva o denominado princípio da legitimidade aparente, “pelo que a expropriante pode dirigir-se às entidades constantes das respetivas inscrições prediais e fiscais (…), mesmo que estas não sejam as verdadeiras e atuais titulares dos direitos que incidem sobre o imóvel a expropriar”; da consagração deste princípio emergem como corolários lógicos que a não intervenção do verdadeiro titular dos direitos em causa não determina, em regra, a anulação dos atos já realizados e, se o proprietário já tiver falecido ou falecer entretanto, desconhecendo-se os seus herdeiros, não é necessário fazer-se a habilitação daqueles, continuando o processo os seus termos legais e a instância só se suspenderá depois de notificada à entidade expropriante a adjudicação da propriedade e posse, prevalecendo aqui razões de celeridade processual e, principalmente, de interesse público; e, se for o Estado o sucessor do interessado falecido, nos termos do artigo 2133.º, n.º 1, alínea e), do Código Civil, não haverá lugar à suspensão da instância, prosseguindo o processo com o Ministério Público a intervir em representação do Estado.

Nesse enquadramento, estabelece o artigo 40.º do Código das Expropriações que têm legitimidade para intervir no processo a entidade expropriante, o expropriado e os demais interessados (n.º 1), sendo que a intervenção de qualquer interessado na pendência do processo não implica a repetição de quaisquer termos ou diligências (n.º 2).

O conceito de interessado é definido pelo artigo 9.º do Código das Expropriações, nos termos do qual se consideram interessados, além do expropriado, os titulares de qualquer direito real ou ónus sobre o bem a expropriar e os arrendatários de prédios rústicos ou urbanos (n.º 1), tendo-se por interessados os que no registo predial, na matriz ou em títulos bastantes de prova que exibam figurem como titulares dos direitos antes referidos ou, sempre que se trate de prédios omissos ou haja manifesta desatualização dos registos e das inscrições, aqueles que pública e notoriamente forem tidos como tais (n.º 3).

E nos termos do artigo 41.º do mesmo diploma, o falecimento, na pendência do processo, de algum interessado só implica a suspensão da instância depois de notificada à entidade expropriante a adjudicação da propriedade e posse, esta no caso de não ter havido investidura administrativa (n.º 1); havendo interessados incapazes, ausentes ou desconhecidos, sem que esteja organizada a respetiva representação, o juiz, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, nomeia-lhes curador provisório, que será, quanto aos incapazes, na falta de razões ponderosas em contrário, a pessoa a cuja guarda estiverem entregues (n.º 2), na certeza de que, no caso de o processo de expropriação ainda não se encontrar em juízo, o juiz determina a sua remessa imediata, para os efeitos do número anterior, pelo período indispensável à decisão do incidente (n.º 3) e que a intervenção do curador provisório cessa logo que se encontre designado o normal representante do incapaz ou do ausente ou passem a ser conhecidos os interessados cuja ausência justificara a curadoria (n.º 4).

Na leitura deste quadro legal que é feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão proferido em 9 de julho de 2015, no âmbito do processo 886/06.5TBMFR.L1-2, disponível na base de dados do IGFEJ, antes referida, «o juiz do processo de expropriação, após a adjudicação da propriedade e posse à entidade expropriante, quando tenha conhecimento do óbito de algum interessado, não pode passivamente limitar-se a suspender a instância nos puros termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 269.º e do artigo 270.º Código de Processo Civil, até que se mostre «notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida», desinteressando-se em absoluto do conhecimento destes sucessores. Deverá questionar os restantes interessados no processo relativamente à respetiva identidade, diligenciando, se necessário, em função dessas informações para vir a concretizar tal identidade, pois que, em última análise, se tais sucessores continuarem «desconhecidos», ter-lhes-á que nomear curador provisório e fazer prosseguir o processo, só cessando este a respetiva intervenção quando passem a ser conhecidos os interessados cuja ausência justificou a curadoria.

O que implica, por um argumento de maioria de razão, que dispondo nos autos dos elementos necessários deva oficiosamente proceder à habilitação dos herdeiros do expropriado falecido.

Por isso, concorda-se com o referido no acórdão desta Relação (e Secção) de 22/2/2008 (reporta-se ao acórdão proferido pela Relação de Lisboa no processo 10390/2007-2, igualmente disponível na mesma base de dados) quando no sumário do mesmo se diz que «na fase judicial do processo de expropriação o juiz deve participar ativamente no esforço de determinar quem tem legitimidade para intervir no processo na qualidade de expropriado», e no respetivo texto, citando-se o Ac RE 27/4/1995 (publicado na “Coletânea de Jurisprudência”, tomo II/1995, página 270) se observa que «a ativa participação do juiz na fase judicial da expropriação para a obtenção da identificação de quem tem legitimidade para intervir no processo na qualidade de expropriado(s) se justifica num processo em que os expropriados são privados da propriedade e/ou da posse sem que tenham recebido ou mesmo sem que tenha sido fixada, em termos definitivos, a indemnização a que têm direito – arts 15.º/2, 51.º/5, 52.º CE».

No citado Ac Relação de Évora admite-se que o «juiz possa oficiosamente ordenar notificações para intervenção no processo dos interessados não chamados», mencionando-se que a notificação oficiosa desses interessados foi admitida no Ac STJ de 20/10/1981, BMJ 315-315, e «pelo menos em termos implícitos» no Ac RE de 2/12/76, CJ 1976, 53-740, Ac RL 12/6/84 CJ 1984, 53-154 e Ac STJ 20/12/84, referindo-se ainda que, «há sérios interesses do expropriado e demais interessados a proteger, que aconselham um papel ativo, oficioso, do juiz, que este não tem noutras ações. Pode, de algum modo, dizer-se que, nesse processo, se esbate o papel de impulsionador e delimitador da ação que, em regra, cabe ao autor, não sendo este a definir, pelo menos nos termos absolutos em que comummente o faz, a relação jurídica controvertida, nos seus aspetos objetivos e subjetivos».


[MTS]