"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/12/2016

Jurisprudência (512)


Revisão de sentença estrangeira; 
nulidade de casamento canónico; ordem pública


1. O sumário de RP 7/7/2016 (295/15.5YRPRT) é o seguinte: 

I- A revisão de uma sentença estrangeira está sujeita ao sistema de revisão formal ou da delibação, devendo levar-se em conta apenas a decisão (dispositivo) nela contida, e não os respectivos fundamentos.

II - Não compete ao Tribunal da Relação apreciar matérias atinentes à nulidade do matrimónio canónico, nem impor o formalismo do Código de Processo Civil (CPC) nos actos e termos próprios do Direito Processual Canónico, que foi observado pelo Tribunal Eclesiástico, no processo que conduziu à prolação da sentença revidenda (ver arts. 1625º do CC, e do Cân. 1671 do Código de Direito Canónico (CDC).

III - Ao Tribunal da Relação, enquanto Tribunal Revisor, apenas cabe analisar se o requerido (parte demandada) foi citado regularmente segundo o direito processual canónico e verificar se, no processo canónico, foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"Nas relações entre o Estado Português e a Igreja Católica vigora a Concordata de 2004, de 18/05/2004, estabelecida entre a Santa Sé e a República Portuguesa (Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 74/2004; ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 80/2004, publicada no Diário da República I-A, n.º 269, de 16/11/2004, com início de vigência em 18/12/2004).

Estabelece o artigo 16º da Concordata:

1- As decisões relativas à nulidade e à dispensa pontifícia do casamento rato e não consumado pelas autoridades eclesiásticas competentes, verificados pelo órgão eclesiástico de controlo superior, produzem efeitos civis, a requerimento de qualquer das partes, após revisão e confirmação, nos termos do direito português, pelo competente tribunal do Estado”.
 
2- Para o efeito, o tribunal competente verifica:
a) – Se são autênticas;
b) – Se dimanam do tribunal competente;
c) – Se foram respeitados os princípios do contraditório e da igualdade;
d) – Se os resultados não ofendem os princípios de ordem pública internacional do Estado Português”.

Dispõe o artº 1625º do Código Civil (CC) (Competência dos tribunais eclesiásticos):

O conhecimento das causas respeitantes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado é reservado aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes”.

No mesmo sentido dispõe o Cânon 1671 do Código de Direito Canónico (CDC):

As causas matrimoniais dos batizados competem por direito próprio ao juiz eclesiástico”.

Estatui o artº 1626º do CC:

1 - A decisão relativa à nulidade e à dispensa pontifícia do casamento rato e não consumado, tomada pela autoridade eclesiástica competente e verificada pelo órgão eclesiástico de controlo superior, é notificada às partes, produzindo efeitos civis, a requerimento de qualquer uma delas, após revisão e confirmação, nos termos da lei processual, pelo competente tribunal do Estado, que determina o seu averbamento no registo civil. 

2 - O requerimento referido no número anterior pode ser apresentado à autoridade eclesiástica onde o processo canónico iniciou os seus termos, a qual, no prazo de 20 dias após o seu recebimento, o remete, por carta registada com aviso de recepção, ao tribunal indicado pela parte requerente, notificando em seguida esta, no prazo máximo de 10 dias, da devolução do aviso de recepção. 

3 - Os tribunais eclesiásticos e as repartições eclesiásticas competentes podem requisitar aos tribunais judiciais a citação ou notificação das partes, peritos ou testemunhas, bem como diligências de carácter probatório ou de outra natureza, só podendo o pedido ser recusado caso se verifique algum dos fundamentos que, nos termos da lei processual, legitimam a recusa de cumprimento das cartas rogatórias”.

Por outro lado, preceitua-se no artº 978º do CPC (Necessidade da revisão):

1 - Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.

2 - Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa

Pois bem.

Importa ter presente, antes de mais, que a revisão da sentença não é uma revisão de mérito, mas antes uma revisão formal, nos termos do art.º 980º do CPC, com a excepção do estatuído na al. f).

Com efeito, vigora entre nós o sistema da revisão formal ou delibação. Mesmo as sentenças constitutivas só são apreciadas à luz da lei reguladora do processo constitutivo, escapando a outro tipo de revisão, a de mérito (José João Gonçalves de Proença, “Direito Internacional Privado–Conflitos de Jurisdições e Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras”, 2ª ed., p. 94).

Quer dizer, a revisão de uma sentença estrangeira está sujeita ao sistema de revisão formal ou da delibação, devendo levar-se em conta apenas a decisão nela contida, e não os respectivos fundamentos (ver, entre outros, os Acs. do STJ de 15/01/2015 e 26/05/2015, e da RP de 18/09/12, 17/04/2012 e 07/05/2009, acessíveis em www.dgsi.pt).

A restrição/excepção constante da alínea f), do art.º 980º do CPC, relaciona-se também com um requisito de ordem formal que é o da decisão constante da sentença em revisão não ser contrária aos princípios da ordem pública internacional do Estado português.

Como vimos, o requerido baseou a oposição à revisão/confirmação da sentença proferida no Tribunal eclesiástico no disposto nas alíneas a), parte final, e) e f), do artº 980º do CPC.

Dispõe o artº 980º (Requisitos necessários para a confirmação)

Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”.

Relativamente ao estatuído na al. a) do normativo, entende-se que o legislador ao aludir a “decisão”, está a reportar-se à parte dispositiva da sentença, à parte onde se contém o comando nela emitido.

Analisando as condições de confirmação das sentenças estrangeiras, observa o Professor Ferrer Correia que “quanto ao requisito da inteligência (ou inteligibilidade) da decisão, sempre temos entendido que o que se pretende é que o tribunal ad quem possa compreender o que foi decidido (isto é, o dispositivo da sentença), sem ter de se preocupar com a coerência lógica entre as premissas e a conclusão.” (Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, 2000, p. 477).

Ora, afigura-se-nos perfeitamente inteligível o dispositivo da decisão revidenda proferida pelo mencionado Tribunal Eclesiástico, declarando nulo o casamento católico celebrado entre a requerente e o requerido.

No que concerne à alegada falta de citação da parte demandada, ora requerido, e a não observância, no processo canónico, dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, cumpre dizer que não compete ao Tribunal da Relação do Porto apreciar matérias atinentes à nulidade do matrimónio canónico, nem impôr o formalismo do Código de Processo Civil (CPC) nos actos e termos próprios do Direito Processual Canónico, que foi observado pelo Tribunal Eclesiástico do Porto, no processo que conduziu à prolação da sentença revidenda (arts. 1625º do CC, e do Cân. 1671 do Código de Direito Canónico (CDC).

Ao Tribunal da Relação, enquanto Tribunal Revisor, cabe analisar se o requerido (parte demandada) foi citado regularmente segundo o direito processual canónico e verificar se, no processo canónico, foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes (ver Cân. 1507 a 1516).

Os aludidos princípios estão consagrados nos arts. 3º e 4º da na lei processual civil portuguesa (CPC).

Resulta, a nosso ver, da matéria de facto apurada, nomeadamente do constante dos números 13 a 15, da fundamentação de facto, que a parte demandada, ora requerido, foi adequadamente considerada legitimamente citada face ao disposto no Cân. 1510 do CDC.

Parece, aliás, resultar do disposto no artº 984º do CPC, que incumbe ao requerido/demandado no processo especial de revisão de sentença estrangeira, ilidir a presunção de que se verifica o requisito da al. e), do artº 980º do mesmo Código.

Acresce que, constando de documentos emanados do tribunal que profere a sentença revidenda, ter sido a parte demandada formalmente citada, a alegação da sua falta de citação não pode proceder desde que não tenha sido validamente posto em causa o valor probatório dos documentos que suportam o entendimento do Tribunal Eclesiástico (ver cartas referidas em 13 a 15, da fundamentação de facto).

Da regularidade dessa citação decorre a conclusão de que foram observados/respeitados, no processo canónico, os mencionados princípios do contraditório e da igualdade das partes.

Com efeito, a parte demandada se não deduziu oposição nem participou no processo canónico, com pleno estatuto de igualdade com a Autora (parte demandante), no concernente ao exercício de faculdades e uso de meios de defesa, foi porque decidiu, livremente, não o fazer (ver o iter processual descrito na sentença revidenda).

Por fim, o requisito previsto na al. f) do artº 980º do CPC.

A ordem pública internacional funciona como um impedimento à aplicação da lei competente, como exceção às regras de conflito da lex fori.

A ordem pública internacional do Estado Português, distinta da ordem pública de direito interno, é constituída por aquele conjunto de normas e conceções sobre a vida em sociedade que servem de base ao nosso sistema ético-jurídico e que devem respaldar a prolação de decisões jurisprudenciais equitativas, independentemente dos fundamentos que as sustentam

“(…) Sintetizando o que podemos colher da análise destes contributos, sem quaisquer preocupações dogmáticas e com fito meramente operacional, cremos estar em condições de considerar que a ordem pública internacional do Estado Português é integrada por uma amálgama de valores basilares e conceitos dominantes de índole social, ética, política e económica expressos em princípios e regras que o aplicador deve, em cada momento histórico, interpretar e reconhecer a fim de apreciar se os mesmos se podem ter como afrontados pelo resultado a que se chegou na sentença arbitral revidenda” (Ac. do STJ de 23/10/2014, e a doutrina e jurisprudência citadas no mesmo, acessível em www.dgsi.pt).

A nosso ver, a decisão proferida pelo Tribunal Eclesiástico do Porto não colide com os valores essenciais básicos do ordenamento jurídico nacional, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local e, consequentemente, não viola os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Por isso, não se verifica a exceção da ordem pública internacional, como limite à eficácia da sentença revidenda."

[MTS]