"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/04/2016

Duas notas sobre a inversão do contencioso nos procedimentos cautelares



1. A inversão do contencioso no âmbito das providências cautelares tem demonstrado ser um instrumento útil de resolução de litígios. A novidade do instituto tem suscitado, no entanto, algumas dúvidas.

Tem-se discutido se, tendo o requerente da providência cautelar pedido a inversão do contencioso, é admissível a propositura de uma acção destinada a obter o mesmo efeito que pode decorrer da inversão do contencioso. Suponha-se, por exemplo, que o requerente solicita alimentos provisórios e pede a a inversão do contencioso (cf. art. 384.º e 369.º, n.º 1, CPC); pergunta-se: durante a pendência do procedimento cautelar, pode ser proposta uma acção destinada a obter os alimentos definitivos?

A resposta não pode deixar de ser negativa, dado que o efeito que pode ser obtido na acção principal é exactamente o mesmo que pode ser conseguido através da inversão do contencioso. Pode assim concluir-se que, estando pendente um procedimento cautelar no qual tenha sido sido requerida a inversão do contencioso, a propositura da respectiva acção principal é inadmissível por nela operar a excepção de litispendência (cf. art. 580.º e 581.º CPC).

2. a) Uma outra dúvida que se tem suscitado é a de saber se a inversão do contencioso só pode ser decretada pelo juiz se a providência cautelar pedida pelo requerente for totalmente procedente. Voltando ao exemplo anterior: suponha-se que o requerente solicita, no respectivo procedimento cautelar, o pagamento, a título de alimentos provisórios, de € 200 por mês; pergunta-se: a inversão do contencioso só é admissível se o juiz reconhecer que o requerente tem direito à totalidade desta quantia?

A resposta parece dever ser negativa. A inversão do contencioso pelo juiz exige que este forme a convicção segura da existência do direito acautelado, o que significa que nada impede que a inversão do contencioso seja decretada apenas relativamente ao quantum sobre o qual o juiz forme uma convicção segura. O requerente de uma providência cautelar que solicita a inversão do contencioso pretende obter uma tutela que, se o requerido não intentar a acção de impugnação (cf. art. 371.º, n.º 1, CPC), se torna uma tutela definitiva. Sendo assim, não se pode esperar outra coisa que não seja a possibilidade de a inversão do contencioso se verificar apenas em relação ao quantum relativamente ao qual o juiz formar uma convicção segura.

O que o juiz não pode fazer é, inverter o contencioso quanto a parte do pedido do requerente e não inverter esse mesmo contencioso quanto à parte restante, decretando, quanto a esta parte, uma mera tutela cautelar e provisória. Quer dizer: é possível inverter o contencioso quanto à totalidade ou a parte do pedido do requerente da providência cautelar, mas não é possível conjugar uma inversão do contencioso parcelar com o decretamento, quanto à parte restante, de uma tutela cautelar e provisória. 

Isto significa que, a partir do momento em que o requerente da providência solicita a inversão do contencioso, são possíveis três hipóteses:

-- 1.ª: a inversão do contencioso é recusada na sua totalidade (por exemplo: o juiz não inverte o contencioso quanto a nenhuma parcela do montante dos alimentos provisórios); nesta hipótese, improcedendo o pedido principal do requerente, cabe ao juiz pronunciar-se sobre o pedido subsidiário desse requerente, pelo que lhe incumbe apreciar se decreta, no todo ou em parte, a providência requerida;

-- 2.ª: a inversão do contencioso é aceite na sua totalidade (por exemplo: o juiz inverte o contencioso quanto à totalidade dos alimentos provisórios pedidos pelo requerente); nesta situação, nada mais há a decidir;

-- 3.ª: a inversão do contencioso é aceite em parte e rejeitada em parte (por exemplo: o juiz inverte o contencioso quanto a uma parcela do montante dos alimentos provisórios e julga improcedente o pedido quanto à parcela restante); nesta hipótese, também nada mais há a decidir.

Do afirmado é possível concluir que, a partir do momento em que o juiz aceita pronunciar-se no plano da inversão do contencioso, só pode mesmo pronunciar-se neste plano. É, aliás, por isso que, tendo sido requerida a inversão do contencioso e decidindo o juiz neste plano, deixa de ser aplicável a liberdade de decretamento pelo tribunal de uma providência distinta daquela que foi pedida pelo requerente (cf. art. 376.º, n.º 3, CPC). Se o juiz decidir no plano da inversão do contencioso, só pode decretar ou não decretar (no todo ou em parte) essa inversão quanto à providência cautelar pedida pelo requerente, não podendo decretar a inversão do contencioso quanto a uma providência cautelar diferente daquela que o requerente solicitou.
 
b) A verificação de que, após a aceitação da inversão do contencioso, o juiz não pode mais pronunciar-se no plano da tutela cautelar e provisória não deixa de ter alguma importância para a estratégia processual do requerente da providência cautelar. Na verdade, a partir do momento em que é solicitada a inversão do contencioso, passa a existir no procedimento cautelar um pedido principal e um pedido subsidiário: 

-- O pedido principal é o pedido relativo ao decretamento da inversão do contencioso e ao reconhecimento do direito acautelado; 

-- O pedido subsidiário é o pedido respeitante ao decretamento da providência cautelar.

Ora, como é próprio de qualquer pedido subsidiário, o pedido relativo ao decretamento da providência cautelar só é apreciado se o pedido principal (relativo à inversão do contencioso e ao reconhecimento do direito acautelado) for totalmente improcedente (uma improcedência parcial do pedido principal nunca permite a apreciação do pedido subsidiário). Portanto, o requerente da providência cautelar terá que ponderar se quer trocar uma eventual procedência parcial do pedido de inversão do contencioso e de reconhecimento do direito acautelado (o que sucede quando o juiz forme uma convicção segura apenas sobre uma parte desse direito) por uma eventual procedência total do pedido de decretamento da providência cautelar (para o que basta a formação de uma convicção sobre a plausibilidade desse direito: art. 368.º, n.º 1, CPC).

MTS