"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/04/2016

Jurisprudência (325)


Factos complementares; consideração oficiosa

I. O sumário de RC 16/2/2016 (12/14.7TBAGN.C1) é o seguinte: 

1. Em face da diferença de redacção do artigo 5.º, n.º 2, al. b), do NCPC relativamente ao artigo correspondente do CPC (264.º, n.º 3), os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa,podem ser oficiosamente considerados pelo juiz no processo, desde que respeitado o contraditório, nada mais se exigindo, designadamente que a parte se manifeste nesse sentido.

2. Perante uma “empreitada de consumo” aplica-se, em primeira linha, o regime especial previsto no DL 67/2003, de 8/4, para além do que se acha fixado no Código Civil.

3. No âmbito da responsabilidade por cumprimento defeituoso respeitante a imóveis, a lei estabelece 3 tipos de prazo: o prazo de denúncia dos defeitos, fixado em 1 ano (artigos 1225.º, n.º 2, do CC e 5.º-A, n.º 2, do citado DL); o prazo para o exercício dos direitos (3 anos contar da denúncia atempada dos defeitos - art. 5.º-A, n.º 3, do referido DL); e o limite máximo da garantia legal de 5 anos (artigos 1225º, nº 1, do C. C. e 5.º, n.º 1 do DL 67/2003).

4. O contrato de correcção de defeitos subscrito pelo empreiteiro e pelo dono de obra logo que este, concluídos os trabalhos, constatou a existência de defeitos, não se traduz numa nova obrigação estabelecida entre as partes para que os defeitos assinalados fossem sanados, um novo contrato, mas corporiza a obrigação do empreiteiro em cumprir os termos da empreitada que inicialmente assumiu, em conformidade com o convencionado e sem vícios, que é a sua obrigação principal dele decorrente, como resulta do disposto no artigo 1208.º do CC.

5. Tal contrato consubstancia um reconhecimento expresso, concreto e preciso do direito a que se arroga o autor, o que, nos termos do disposto no artigo 331.º, n.º 2, do CC, impede a caducidade do direito.

6. No caso de uma empreitada de consumo, os direitos conferidos ao dono da obra, previstos no artigo 1221.º e seg.s do CC, não têm de ser, sucessivamente, exercidos e pela ordem que ali consta, mas são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas restringida pelos limites impostos pela proibição geral do abuso de direito (cfr. art. 4.º/5 do DL 67/2003).

7. No caso do dono da obra já não se encontrar em condições de devolver a obra realizada pode resolver o contrato, se a impossibilidade de devolução resultar de acto imputável ao empreiteiro, nomeadamente quando ocorre em consequência do defeito existente na obra.

8. Se instado para reparar os defeitos, o empreiteiro não o faz, incumpre a sua obrigação, com a correspondente obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 798.º CC, que corresponde ao custo das obras que seja necessário efectuar.
 

II. Do acórdão consta a seguinte passagem:

"Dispõe-se no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do NCPC que:

“2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

(…)

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.”.


Preceito, este, que corresponde ao anterior 264.º, n.º 3, do CPC, embora, com algumas diferenças.

Efectivamente, dispunha-se neste que:

“3. Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.”.


Como resulta do cotejo entre estas duas normas, verifica-se que, no caso de ser o juiz que, por sua iniciativa, os pretende considerar, desapareceu a exigência de que a parte manifeste vontade de deles se aproveitar (a que se seguia, no anterior regime, o exercício do contraditório), bastando-se, agora, a lei em que às partes seja dada a “possibilidade de se pronunciar”.

Não obstante, mesmo no âmbito da nova lei, Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum […], 3.ª Edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, a pág.s 141 (nota 2) e 309, defende que continua a exigir-se que seja a parte interessada a declarar que se quer aproveitar dos factos complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados, assim se observando o ónus da alegação, decorrendo a necessidade desta declaração do princípio do dispositivo que, de acordo com este Autor, estava expressa no anterior 264.º, n.º 3 e que está implícita na actual formulação.

Segundo ele, a pronúncia das partes terá de ser positiva, no sentido de introduzir o facto no processo, sob pena da violação do princípio do dispositivo, visando no seu entender, a alteração legislativa, apenas realçar que a alegação pode provir de qualquer das partes mas sem que se extinga a obrigação de a parte que deles se quiser aproveitar “os introduza como matéria na causa, mediante a manifestação, equivalente a uma alegação, da vontade de deles se aproveitar.”.

Com todo o respeito que nos merece o Autor ora citado, em face da diferença de redacção de um para o outro preceito, não nos parece que, actualmente, se continue a exigir que para que os factos complementares ou concretizadores possam ser tidos em conta pelo juiz, tenha de haver uma manifestação de vontade da parte em que os mesmos sejam introduzidos no processo, bastando-se, como já referido, a lei em que tal consideração para efeitos processuais seja precedida do exercício do contraditório, que às partes seja dada a faculdade de se pronunciarem sobre essa nova factualidade.

Repare-se que a lei diz que tais factos podem ser considerados pelo juiz, desde que respeitado o contraditório, nada mais se exigindo, designadamente que a parte se manifeste nesse sentido.

O que importa é que se trate de factos “que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa” e não de factos essenciais (que às partes cabe alegar, cf. n.º 1 do artigo 5.º do NCPC e que, por isso, não pode o juiz suprir através de averiguação oficiosa).

Ora, no caso em apreço, estamos perante a consideração de um facto complementar do anteriormente alegado.

Efectivamente, o autor sempre alegou que as obras acordadas seriam a realizar num prédio de habitação e, reitera-se, no contrato de correcção e defeitos, de fl.s 61 e 62, outorgado por ambas as ora partes, refere-se, expressamente, que se trata “da casa de habitação do primeiro outorgante” – aqui autor.

Em face do que temos de concluir que o facto descrito no item 5.º dos factos provados, é um mero complemento do anteriormente alegado.

Como referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao NCPC, Almedina, 2014 - 2.ª Edição, a pág.s 42 e 43, são complementares ou concretizadores os factos pertencentes à relação jurídica material já caracterizada pela descrição de outros factos essenciais, integrando a causa de pedir deficientemente narrada na petição inicial ou na reconvenção.

Ali defendendo, ainda, a desnecessidade de manifestação de vontade da parte em deles se aproveitar, desde que respeitado o princípio do contraditório.

Ora, no caso em apreço, como já referido, o autor descreveu a relação jurídica material em que baseia a sua pretensão, apenas tendo omitido que se tratava da sua casa de habitação e de sua família, o que, logo, desde o início, deveria ter feito.

Ou seja, estamos, precisamente, no domínio de deficiente/incompleta narração dos factos na petição e o facto “considerado” se integra na relação jurídica atinente, completando-a/esclarecendo-a.

No decurso da audiência de julgamento, tal veio-se a revelar, pelo que nada impedia o julgador de manifestar a sua intenção de dele se aproveitar, como o fez.

Trata-se de facto complementar do anteriormente alegado e não se torna necessário que a parte interessada se manifestasse nesse sentido, porque foi o próprio julgador a prevalecer-se da faculdade que é estabelecida no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do NCPC, sendo suficiente, como nele se exige, o exercício do contraditório, que foi exercido, nos moldes acima já expostos, pelo que a actuação do julgador se moveu dentro dos parâmetros estabelecidos no referido artigo 5.º, n.º 2, al. b).

Esta posição é, igualmente, defendida por M. Teixeira de Sousa, em anotação a Acórdão desta Relação (subscrito por este Colectivo) de 22/09/2015, no seu blogue do IPPC.

Concorda-se com a posição aí referida (apenas com a ressalva de que ali, na nossa opinião, por se tratar de causa de pedir complexa – acidente de viação – não se tratava de facto complementar ou concretizador, mas sim autónomo, o que impedia a sua consideração, para mais apenas em fase de recurso, como era o caso).

Assim, no caso em apreço, reitera-se, por se estar em presença de um facto que é mero complemento do já alegado, podia, como o fez, o M.mo Juiz a quo proceder como procedeu." 


III. A citação do Blog -- que se agradece -- refere-se a Jurisprudência (204). A divergência que o acórdão assinala respeita a saber se o facto de o condutor de um veículo acidentado o conduzir como empregado de uma sociedade e por conta desta pode ser considerado um facto complementar. O acórdão considera que esse facto integra uma causa de pedir complexa e, por isso, não pode ser considerado em recurso.

Sem entrar em grandes pormenores, salienta-se, quanto a esta matéria, apenas o seguinte: tendo presente o regime actualmente vigente para os factos complementares (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC), há que repensar o conceito de "causa de pedir complexa" (aliás, pela mesma razão que leva a concluir que o actual direito português já não consagra a teoria da substanciação quanto à natureza da causa de pedir). Actualmente, aquele conceito não pode referir-se a factos cuja não alegação na petição inicial não determine a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (cf. art. 186.º, n.º 2, al. a), CPC). Noutros termos: ao contrário do que antes sucedia, deixou de se poder equiparar factos essenciais para a procedência da causa a factos que integram a causa de pedir. Portanto, saber a que título o condutor do veículo acidentado o conduzia pode ser um facto essencial para a procedência da acção de indemnização, mas isso não o torna, por essa circunstância, um facto que integra a causa de pedir.
 
MTS